elvira pagã |
é de kierkegaard a expressão: que desgraça ser mulher! e quando se é mulher, sem dúvida, a pior desgraça, no fundo, é não compreender o que é ser uma desgraça.
a formulação que abre a obra, o estigma do passivo sexual, de michel misse, foi retirada de o segundo sexo de simone de beuvoir e não esconde referência ao estigma. até o reforça, o nomeia. quem entretanto se atreveria a falar seriamente “ no estigma de ser mulher”, também referenciado, nomeado e reforçado, por exemplo, na música popular brasileira — como em tantos outros setores – pelo partideiro martinho da vila em seu “ você não passa de uma mulher” ou no clássico de ataulfo, amélia ? (letra de mário lago, histórico comunista).
mulheres assassinadas seria um título gongórico. de efeitos culátricos e camufladores. de indisfarçável equívoco ideológico quanto a nossa proposta de alçar a questão do cotidiano, para além do marchetar jornalístico, situando os diversos enfrentamentos da mulher no seu existir, a partir dos recentes assassinatos de mulheres mineiras por maridos machos “desonrados”. que como tantos outros se incorporam a manutenção do status quo nacional, onde o assasssinato corporificado camufla o assassinato simbólico — crudelíssimo socialmente.
mulheres assassinadas é um título de efeito, levanta, sem dúvida, o clamor sobre o crime. mas o paroxismo da adjetivação é contraditoriamente um eufemismo que reconhece a barbaridade do fato, entretanto ignora conscientemente e assenta cada vez mais no substractum social, a falácia da questão da honra ferida do macho-fascista, colaborando no assentimento da necessidade, sempre imperiosa, de lavar a honra(do macho).
não é de estranhar que o judiciário registre tantos casos de absolvições aos machos justiceiros. doca street foi bastante retaliado pela imprensa à luz econômica, válida. mas é um entre milhares de casos anônimos. isto não é surpresa. a imprensa é macha, o judiciário, um corpo de machos, desnecessário dizer que o fio que faz erigir nossa conduta social é machista, manifesta no princípio de uma espinha dorsal edificada a partir de um patriarcalismo fundado em razões ascéticas burguesas mistas a remanejáveis tradições judaico-cristãs.
nossas elviras, mesmo quando pagãs, o são cristãs. isso desde a destruição da proto-sociedade que era matriarcal.
diante das evidências científicas e diversas obras de antropólogos e sexólogos “machos” não há mais como negá-lo. a mulher vem paulatinamente, implacavelmente, incorporando seu estigma. mesmo quando dos diversos movimentos libertários, tal como os das sufragettes, rebelam-se, incorporaram mais fortemente seu estigma porque suas resultantes fazem-se notar num femininismo equivocado — porque referenciado em valôres machos- e, assim sendo, não é uma conquista, onde muitas se esguelam, assinando depois a capitulação em torno daquilo que combatem.
a noção de casamento indissolúvel também é outro componente macho. a relação sexual duradoura é que é a questão. quando se tem de admitir que o casamento nao é uma instituição inata ou sobrenatural e sim uma simples instituição social, de imediato levantam-se vozes— mesmo de tendencias pagãs-cristãs- tentando provar que a humanidade sempre viveu na monogamia. chegando-se ao ponto de falsificar a etnologia para concluir que a instituição casamento é indispensável para à existência da sociedade humana, da cultura, da civilização, renunciando-o a qualquer possibilidade de examinar o substrato econômico-social das formas sexuais e de suas variações no tempo e no espaço. isso todavia foi feito por pensadores do porte de engels, em a origem da família, da propriedade privada e dos estado, pelas análises do expurgado de direita-esquerda reich – no brasil por oswald de andrade – mas evidentemente varridos de nossa cultura pelo domínio hegemônico de uma má política. antes mesmo destes, fourier, socialista utópico na obra(só agora revelada) o novo mundo amoroso, escrita em 1816/18, antes de sthendal, sobre o amor, em 1822, pregava a política harmônica do ato de amar que foi deturpada e envolta em mistérios que pululam do silêncio mortal a exclamações estupefatas das repetições que sempre envolvem as questões libertárias do sexo, profundamente permeadas de política e vice-versa, pois não existe libertação sexual sem libertação política, o que implica não só na derrubada do sistema moral do capitalismo bem como de sua própria ordem.
a concepção contemporânea do casamento, seus códigos de honra, é ainda em larga escala a dos evangelhos, tal como o desenvolveram canonistas da idade media. e até o sec.XVI a igreja lecionou sozinha, para depois viver em regime de concubinato com o estado.
a verdade, porém, é algo bem mais percuciente. e quando razões materiais existem, a intocabilidade de certas questões vai pras cucuias, pois a sociedade modifica a ideologia – mas sempre na visao do macho – como por exemplo quando a população da europa central foi dizimada pela guerra dos 30 anos, igreja e estado apressaram-se com a dieta de nuremberg (14 de fevereiro de 1650) promulgando um decreto que abolia a monogamia, espaldando a bigamia durante dez anos. se isso ainda não for suficente, qualquer viagem turística ao oriente serve para mostrar a condição da mulher e que a monogamia é mais um blefe do tipo autoritário-cristão.
a luta pela liberdade da mulher dispor do direito das dimensões políticas do uso do seu corpo tem gerado muitos equívocos. a mulher-objeto não existe, existe nas caricaturas do macho-fascista que incapaz de auto-valer-se da dialética do prazer fragmenta o mundo em rótulos de existência conceitual bastante efetivos para sua condição castrante, manipulando o instrumento objeto-mulher como organismo massacrado à sua exploração.
enquanto persistir uma luta de libertação da mulher exclusivamente restrita à questão sexual, a morte de “adúlteras” diante da consciência política falsa, será constante entre os espaços-machos verificáveis entre a legalidade e a legitimidade.
enfim, a memoria não só das mulheres recém massacradas de fato, mulheres mineiras no seio da anquilosada tradicional-sociedade-mineira, que se orgulha de assassinar para lavar a honra; às mulheres proletárias assassinadas sem nenhum simbolismo e também aquela que foi uma tentativa ao nivel empirico-imediatista de equacionar a questão feminina no aspecto de libertação aos padrões estereotipados, profundamente mais cruéis para as “cidadãs de segunda-classe”, sucumbindo vítimas de seu próprio primitivismo, num genocídio bem evidenciado – bem como nos demais atos de justiça da honra – que mostram a pequenez da condição humana quando referenciados no machismo, no matriarcado.
a elvira, estas questões, que entreolham-se ante a total escassez a que foi reduzida a condição feminina.
“ quem sabe ó mãe, o super-homem venha nos restituir a glória só por causa da mulher "
publicado na terça.feira 9 de setembro de 1980 na página de opinião do diário de pernambuco, “ o jornal mais antigo em circulação na américa latrina”.
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